4 de jul. de 2008

Ação de tentente é "explicável", diz psicólogo

Vinte e cinco anos, lembrança de um bebê de dois meses e muitas, muitas lágrimas. Esse era o cenário à frente do juiz federal que ouviu o tenente do Exército Vinícius Ghidetti de Moraes Andrade, que ao entregar 3 jovens do morro da Providência a traficantes do morro da Mineira, no Rio de Janeiro, provocou a discussão sobre o papel das Forças Armadas na segurança pública.

A atitude do tenente é "explicável", de acordo com Francisco Heitor da Rosa, professor da Universidade Estadual de Londrina (PR) e especialista em Psicologia Militar. Ele reforça o raciocínio de que militares das Forças Armadas não são preparados para fazer o trabalho das polícias:

- A função dele é assim. Se ele tem que parar o trânsito em um determinado lugar e alguém fura o trânsito, ele não fica na frente do carro. Ele atira no carro (...) Ele é treinado dizendo: "Pare! Não parou, atira" - explica o professor.

Rosa argumenta que os militares são treinados para respeitar a hierarquia e quando vê a autoridade desrespeitada, reage de maneira diferente que teria a Polícia, preparada para lidar com a população civil. E cita o depoimento do tenente para ilustrar a idéia:

- Essa foi uma pergunta que o juiz fez ao militar que estava depondo: "O traficante desrespeita o Estado, você imaginou que fosse respeitar você?" O militar, de verdade, não pensa que vai ser desrespeitado.

Para o especialista em psicologia militar, houve também um erro estratégico ao mandar uma tropa do Rio de Janeiro para fazer a segurança de um morro na mesma cidade. E essa responsabilidade, critica, é de "quem mandou" as tropas para lá:

- Se tivesse uma tropa, por exemplo, do Amazonas, do Rio Grande do Sul, ou do Nordeste (ao invés da carioca), eles não teriam esse contato com um traficante.

Leia a íntegra da entrevista com o professor da UEL, que fala também sobre a influência que a pressão popular pode exercer no julgamento:

Terra Magazine - Os oficiais do Exército estão preparados para esse serviço a que eles estão submetidos?
Francisco Heitor da Rosa - O problema é: qual é o tipo de serviço que foi dado para eles executarem? O de polícia. E o Exército, Marinha e Aeronáutica não são treinados para isso. O militar das Forças Armadas não é treinado para fazer serviço de patrulhamento ostensivo de população civil. Não há nenhum tipo de formação específico para isso dentro das Forças Armadas.

Ele é treinado, basicamente, para ir para a guerra, certo?
Ele é treinado para garantir a integridade da nação, tanto territorial quanto institucional, e basicamente para a função de combate. O que implica uma série de pressupostos. Por exemplo, significa que do outro lado tem um inimigo e não um cidadão ou um civil exercendo seus direitos básicos de ir e vir, de trabalhar etc. O militar não está treinado para isso, não é a função dele.

Até porque o militar estaria sempre numa situação em que não há ou que está ameaçado o Estado Democrático de Direito.
Certamente. Essa seria a lógica. E uma vez que você entende essa lógica, entende que qualquer tipo de ameaça à função dele, à atividade dele é sempre uma ameaça séria. Não existe uma ameaça leve. Ou é ameaça, ou não é ameaça. A idéia no combate é você ferir o inimigo, preferencialmente. Não matá-lo. Ferir, para que ele seja um peso para o adversário, que tem que recolhê-lo, aumentando as baixas dos inimigos, que precisam de um ou dois para carregar o ferido. Não existe a lógica de fazer prisioneiro. Quem tem essa lógica é a Polícia Civil e Militar. Que vai fazer patrulhamento ostensivo para inibir o crime. Você não está trabalhando com um inimigo, mas com um transgressor. Essa é a mentalidade dos policiais, que o militar não tem.

Então é compreensível que eles tenham tido essa atitude, sentindo por exemplo, a sua hombridade lesada?
O que ele deve ter pensado foi uma lesão à autoridade. O militar não é treinado para pensar que a sua autoridade pode ser desrespeitada. E constitucionalmente não pode. Ou não poderia. Aliás, essa foi uma pergunta que o juiz fez ao militar que estava depondo: "O traficante desrespeita o Estado, você imaginou que fosse respeitar você?" O militar, de verdade, não pensa que vai ser desrespeitado. Até porque, a função dele é assim. Se ele tem que parar o trânsito em um determinado lugar e alguém fura o trânsito, ele não fica na frente do carro. Ele atira no carro. Se a pessoa sai do carro com um porrete na mão, ele não conversa para acalmar a pessoa, ele dá um tiro de fuzil no sujeito. Então não é função dele ficar lidando com população civil. Ele é treinado dizendo: "Pare! Não parou, atira". Aí depois você pergunta por que o sujeito não parou. Se o sujeito ficar vivo. O que houve, dentro de uma política de quartel, seria um desacato, um desrespeito. Um processo que dá punição se o sujeito que faz isso é um militar. O que o grupo deve ter pensado, foi: "esse povo tem que entender que não pode fazer isso". Provavelmente, e é até razoável acreditar que ele não fosse imaginar que os jovens seriam mortos. Eles, militares, disseram que era para dar um susto, dar umas pancadas, deixar o neguinho correndo pelado pela favela. Essa mentalidade não é distorcida, não é uma distorção social. Num caso como esse, o policial vai conversar, eventualmente dar uma descompostura no cara ali mesmo. Se o sujeito insistir, vai algemar, levar para a delegacia, dar o desacato, deixar preso até o advogado vir... É burocrático? É, mas eles são treinados para fazer isso.

Mas como justificar, dessa forma, que eles tenham tido contato com os traficantes, considerando que, nessa linha de raciocínio, o traficante seria um inimigo? Do Estado e da Força que ele defende?
O problema é que quem está fazendo o serviço lá é gente do próprio Rio de Janeiro. Então eles realmente conhecem as pessoas da região, têm contato. Foi o mesmo erro que o governo chinês cometeu quando houve a manifestação na Praça da Paz Celestial. Eles deslocaram as tropas de Beijing para fazer a contenção da manifestação popular. Quando as tropas chegaram, eles encontraram parentes, familiares, amigos na Praça. Então a tropa debandou. Esse é um erro estratégico, mas de quem manda a tropa para o local. No caso brasileiro, era natural de se esperar que alguns elementos da tropa também já tivessem contato com o povo do morro. Se tivesse uma tropa, por exemplo, do Amazonas, do Rio Grande do Sul, ou do Nordeste (ao invés da carioca), eles não teriam esse contato com um traficante.

A atitude deles é, então, justificável? Independente de certa ou errada, é justificável?
Eu diria que ela é explicável. E quando você consegue explicar é porque você tem causações que te levam a agir dessa forma, como sendo uma resposta natural. Mas ela não é justificável no sentido de que temos leis e a lei não permite isso. Se o militar olha o mundo por um prisma, baseado em hierarquia e disciplina, o civil olha pelos seus direitos, e não pelos seus deveres. Então quando você joga o militar de Forças Armadas para fazer esse tipo de serviço, você está jogando gasolina em brasa. A tendência é que haja um atrito muito forte. Porque elas enxergam o mundo e as relações de uma maneira diferente. E isso explica também o comportamento da população: "se o negócio tá feio, vai lá e desce o cacete". Só que isso, pensam eles, é bom quando é contra o bandido; contra a população é ruim. O resultado final foi completamente inadequado. Do ponto de vista legal, nada justifica. Agora, do treinamento e formação que os militares têm, isso explica porque agiram dessa forma.

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