10 de jan. de 2008

Martin Scorsese

Por favor, leiam a entrevista desse homem.

Tivemos um lampejo das últimas quatro décadas do cinema este ano, quando seus amigos George Lucas, Steven Spielberg e Francis Ford Coppola lhe entregaram seu primeiro Oscar de direção (por Os Infiltrados). Por acaso aquele momento trouxe de volta memórias dos anos 60, quando todos vocês começaram?

Naquela época, estávamos tomados pela obsessão de fazer filmes. Sabíamos que o esquema antigo de Hollywood estava acabado, então pensamos que podíamos abrir brechas de algum jeito. O Francis já estava no esquema – ele foi o irmão mais velho. O Steven era amigo do George, e o George estava trabalhando com o Francis, começando. Mais tarde, vi que meus filmes não foram bem aceitos pelo público como os de Steven, Francis ou George, mas tive de aprender a viver com isso. Eu pensava: “Tudo bem, ainda vou fazer filmes assim”. Às vezes, meus filmes são difíceis de aceitar, por causa da violência, do sangue. Mas como um amigo meu me disse, uma vez: “O que você queria? Você pega pesado com os espectadores, por que eles deveriam gostar de você?” Tive sorte de receber o Oscar agora. Ainda bem que não ganhei nos anos 70. Acho que eu não era forte o suficiente.

O que o Oscar teria causado em você?
Provavelmente, teria mudado o meu jeito de pensar. Eu não estava pronto como pessoa, na época. Vêm o orgulho, a insolência, a queda. Em que eu poderia me apoiar? Os filmes em si é que eram o motivo da minha alegria, eram a parte louca da coisa. Era esse o objetivo – e não o ato de ser premiado.

Qual é a lembrança mais positiva que tem dos anos 60?
A música era excelente. Comecei a ouvir diferentes tipos de música. No começo da década de 1960, era a música pop, e tudo mudou quando vieram os britânicos. Os Beatles transformaram a música pop em arte, depois foram os Rolling Stones. É como eu disse no documentário sobre o Bob Dylan: a primeira música que ouvi do Dylan foi “Like a Rolling Stone”, porque a ouvi na parada do Top 40. Eu não ouvia “Gates of Eden”, não tinha comprado os álbuns folk. O Bob estava tocando no Gerde’s Folk City [no Greenwich Village, em Nova York], e estávamos na Greene Street, bem na esquina, na escola de cinema, mas nunca fomos lá ver. Passamos bem em frente. O único motivo pelo qual eu faço esses documentários sobre música é porque quero saber mais a respeito. Filmar um show dos Rolling Stones – estou fazendo isso agora – é como usar drogas. Preciso disso.

Você disse uma vez que a música lhe dá as imagens para os filmes. Ainda é assim?
Totalmente. Mas quase sempre é a música mais antiga. Para Os Infiltrados, Robbie Robertson [ex-líder do extinto grupo The Band e responsável pela trilha sonora de Os Infiltrados] me mandou “I’m Shipping Up to Boston” – eu normalmente não escuto Dropkick Murphys. Pedi uma lista de tudo que ele tivesse na jukebox, de Patsy Cline a Nas.
Quando seu filme de estréia, Caminhos Perigosos, saiu, em 1973, com o Harvey Keitel interpretando uma espécie de “versão sua”, você disse que foi uma tentativa de mostrar como era crescer no (bairro) Little Italy. Mas não havia também a intenção de se mostrar o rock’n’roll que você ouvia nos bares e cortiços?Eu me lembro da cena da briga no bilhar, ao som de “Please Mr. Postman”, das Marvelettes. O som é mesmo de bandas de mulheres, as Ronettes com “Be My Baby”, as Shirelles, Phil Spector. Fantástico. Se você ouvir a trilha, verá que é toda norte-americana.Também tem “Jumpin’ Jack Flash”.Pusemos os Rolling Stones, sim, e também teve “Tell Me”, mas é com bases de blues. Esse é o segredo. Também tem [Eric] Clapton. O lance era, repito, a guitarra bluseira. Sou obcecado por guitarras, pode ver ali [aponta para uma guitarra encostada na parede, em frente à sua estatueta do Oscar]. Aquela ali é de O Último Concerto de Rock [The Last Waltz, documentário sobre o show de despedida do The Band, filmado por Scorsese]. Foi o Robbie que me deu.

Quais são as memórias que a música resgata em você?
Ela se torna parte da transformação química que acontece com a gente o tempo todo. Mesmo quando freqüentei o Washington Square College, na Universidade de Nova York, mesmo no departamento de cinema, era um menino que vinha de um território de sicilianos ítalo-americanos.
Cheguei com toda essa carga nos anos 60. Aquilo que chamaram de a “liberdade de expressão da década de 1960” foi uma enorme mudança para mim. Em 1965, já via as coisas de outra forma, do ponto de vista político.

Que outra forma?
Os protestos contra a Guerra do Vietnã. As pessoas da minha origem eram pró-Guerra do Vietnã. Meus amigos mais próximos eram pró-Vietnã.
Quando você rodou o curta The Big Shave, em 1967, protestou contra a Guerra do Vietnã mostrando um jovem que se barbeia em frente ao espelho, que se corta até ficar todo ensangüentado...
Isso mesmo. Houve um protesto de cineastas, em Nova York, chamado Semana das Artes em Fúria, contra a Guerra do Vietnã. Fiz esse curta tendo o protesto em mente. Àquela altura, eu já não tinha quase nada a ver com as pessoas do meu próprio bairro. Eu estava na diáspora, com gente nova, novas formas de pensar.
Eles diziam: “Você nos desertou”.
É. Houve ressentimento. Quando viram Caminhos Perigosos, também ficaram ressentidos.
Em Taxi Driver, você faz o personagem de Robert De Niro, Travis Bickle, representar o horror do Vietnã. O que fez as coisas mudarem?
Mais ou menos em 1965, fui à missa do bairro, em um domingo, e ouvi o padre descrever a Guerra do Vietnã como uma guerra santa. Foi quando me desliguei daquilo tudo. Algo me disse que o padre estava absolutamente errado.

Isso fez você se sentir parte do movimento estudantil de protesto?
Fez, sim. Pra ser bem honesto, estabeleci um limite para mim, para evitar o ativismo totalitário. Tinha o [movimento] Weathermen, um monte de outros grupos secretos. A violência era o melhor jeito de mudar a situação? Não achei que deveria me meter com aquilo, porque não confiava naquilo. Não confiava na ideologia cega. Muito daquilo era um extravasamento da energia dos jovens, eram brigas de rua. Até certo ponto, quanto daquilo estava sendo feito pelo país? Quanto era feito pela ideologia? Quanto correspondia a uma visão romantizada?

Então, foram os anos 60 que transformaram você em um jovem raivoso?
Não, a raiva rolava o tempo todo. Desde a infância. Eu tinha asma. Ficava muito bravo quando não conseguia respirar [risos]. Sempre penso: “E se eu não tivesse sido colocado num quartinho escuro aos 3 anos e depois numa cabine com um inalador, e tivesse podido correr, brincar e rir o quanto quisesse? E se tivesse nascido em outra família e lido livros e entendido que, como fez o Theodore Roosevelt, era possível combater a asma?” Mas eu não sabia. Conseqüentemente, isso estreitou minha gama de possibilidades. Tudo tinha que ser feito em casa, enquanto os garotos jogavam taco na rua.

Você era o...
O rejeitado. Tudo o que eu sabia de esportes é que era possível apostar neles. O cinema era tudo pra mim. Eu devia ter 5 anos quando comecei a desenhar cenas que se tornaram meus filmes secretos. Era um bairro barra pesada. Meu pai era ótimo, mas ele ficava nervoso porque eu era o menino doentinho que ficava num quarto desenhando coisas.

Uma vez você disse que a política não foi grande coisa para você na infância, porque o governo era feito de gângsteres e padres.
É. E meu pai siciliano, é claro. A autoridade era meu pai, que respondia ao pai dele, ali no mesmo quarteirão. Sempre se discutiam as possibilidades de circulação num universo que era cheio de trapaceiros. A autoridade maior era a família.

Até mais do que a máfia?
Meus pais tinham de lidar com o fator crime porque eles não teriam como viver de outra maneira. Meus avós nem se tornaram cidadãos, não confiavam em ninguém. Não tive a educação adequada para pensar que poderia me tornar qualquer coisa que não fosse padre, por exemplo. Eu não servia para a máfia.

O que era necessário para se tornar um mafioso?
Um coração de pedra. Você vai machucar as pessoas.

Foi nessa época que você começou a pensar em se tornar padre?
Eu cheguei a freqüentar a escola preparatória do seminário por mais ou menos um ano, mas me pediram para sair. Comecei a perceber o sexo. E o rock’n’ roll também me distraia: Elvis, Little Richard. Depois disso veio o colegial, na [escola católica] Cardinal Hayes, no Bronx. Havia um jovem padre no colégio, ele nos deu livros, nos disse para ver alguns filmes, nos mandou pensar.

Quando você vê a situação atual, com o Bush no Iraque, o que você pensa?
É uma outra abordagem agora. Quando a situação vietnamita começou, no início dos anos 60, houve resistência a ela de imediato, houve questionamento. Agora, não. O homem foi eleito pela segunda vez. A coisa vai além da sátira. Outro dia estava passando o filme Bananas, do Woody Allen. E a mulher que interpreta a miss Estados Unidos diz: “Sou contra o sr. Mellish [personagem de Allen], porque ele discordou do presidente, e é aceitável discordar nos Estados Unidos, mas se você discorda demais, não é bom para o país”. Isso numa comédia de 1971. Hoje, os congressistas falam isso sério. É obsceno.

Como você reage a essa obscenidade?
Veja em Os Infiltrados, essa é minha reação. O personagem Billy, Leo DiCaprio, toma os remédios da mãe e bebe o tempo todo, está numa situação horrível, se disfarçando de gângster. Ele é um condenado desde o princípio, aceita essa situação impossível, como se fosse um garoto se alistando no exército e indo pra guerra, e, duas semanas mais tarde, levando um tiro. “O que eu fiz? Como eu saio dessa?” Não sai. Nem se trata de uma guerra declarada, é uma guerra eterna, o bem e o mal. Em termos de sociedade, você tem a polícia, os gângsteres, os juízes – corruptos, todos corruptos. O fim de Os Infiltrados é um “marco zero” moral. É como a devastação do 11 de setembro: alguma coisa foi completamente eliminada, e a única coisa que podemos fazer é erguer tudo de novo, com uma nova geração.

Você vê alguma figura em quem podemos confiar para nos tirar desta sensação de desconsolo?
É difícil acreditar em uma pessoa. Tanta coisa é escondida da gente, o que acontece em Bagdá, em Basra. Os políticos sempre têm medo de dizer as coisas, o jeito que a mídia está. Imagine se os presidentes anteriores que consideramos ótimos fossem examinados desse jeito. Não sobraria ninguém.

Hoje, a gente ouve os políticos dizerem sempre que “precisamos seguir em frente”.
Em frente como? Em direção ao precipício. Fomos devorados pelo conforto dos produtos feitos para consumo. Também tem a questão do que os cacarecos tecnológicos fazem por você. Não me dou muito bem com telefones celulares – é por isso que os celulares funcionam como armas em Os Infiltrados. Não uso computador. Tenho, sim, TV paga, mas para ver filmes. O resto do que tem na televisão hoje é feito para chamar sua atenção constantemente, para te entupir. Enfiam informação em você, e você fica amortecido. As imagens e o cinema se tornam parte de um mundo cheio de imagens podres, uma sociedade de imagens podres. Você não sente nada a respeito de nada, e isso significa que você não vai querer fazer nada.

Mais um golpe mortal no ativismo?
Sim. O que aconteceu, e todo mundo sabe disso, foi a insensibilização. Não é tanta história assim que nos separa das execuções públicas aqui em Nova York. Agora vemos os enforcamentos no Iraque. Não temos pra onde nos direcionar, exceto para a realidade disso. Também há acusações aos meus filmes, de que toda vez que faço algo violento, a coisa avança.

E como você responde a essas acusações?
Estava conversando sobre isso com o González Iñárritu, o diretor mexicano que fez Babel e Amores Perros, de que gosto muito. Discutíamos a violência em nossos filmes e o que ela significa neles. Ele disse: “Viemos de culturas em que a violência é séria, não é um jogo”. É daí que viemos. Quando rodei Cassino – com Las Vegas e os jogadores –, tem um momento em que um homem põe a chave na ignição do carro e o carro explode. Aquisição. Ter mais e mais e mais, até que nada seja suficiente, até que simplesmente exploda, até que a sociedade inteira exploda. Vejo as coisas assim, transbordando ira, mas de um jeito moderado agora, para que isso não me corroa. A ira não é uma coisa boa – é um dos sete pecados capitais, certo?

Assim como a preguiça – não fazer nada.
Num dado momento, eu disse para alguns estudantes de cinema: “Acho que é necessário sentir ira”, mas acho que o que eu quis dizer foi que eles têm de estar a fim de fazer o trabalho.
Você não acha que muitos jovens sentem que não conseguem lutar contra o governo?
Mas você tem de lutar. É preciso.
O que falta se você comparar seus dias de estudante ativista e hoje?
Idealismo. É disso que sinto falta quando penso nos anos 60, talvez também porque eu era jovem. Existia o idealismo que realmente transformava as coisas, existia ação por parte das pessoas – certamente não em todas as frentes – mas havia ação. Enquanto eu ouvia a igreja falar em guerras santas, esses idealistas estavam falando de empatia, de se pôr no lugar do outro.

Como podemos recuperar essa empatia?
Ao entendermos que ataques terroristas não acontecem do nada. Sempre existe causa e conseqüência. Por que não lidamos com as causas, em vez de ficarmos sempre chocados com os horrores que estão acontecendo e continuarão acontecendo? Gosto de estudar história, e li sobre como as civilizações começaram a desmoronar, como os romanos lidaram com as tribos bárbaras. Tem de haver outra forma de lidar com isso que não seja o envio de meninos e meninas para a guerra. Use sua cabeça, como aquele jovem padre nos disse no colegial. Uma vez, ele falou: “Vocês, meninos, não ouvem. Quando planejam um roubo, vão acabar em tiroteio, vão disparar armas – esse é o problema. Pensem!” Nunca me esqueci disso. Foi isso que fizemos com o mundo.
Não pensamos.
Saímos atirando.

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